Um passeio por 'Veneza' guiado por atores emocionados
A capacidade de sonhar e acreditar nos próprios sonhos. Foi em torno dessa “vibe” que girou a entrevista coletiva que reuniu parte do elenco e o diretor de “Veneza”. O longa de Miguel Falabella estreia hoje (17 de junho) nos cinemas. A emoção marcou presença no encontro virtual com os atores Dira Paes, Eduardo Moscovis, Carol Castro e Danielle Winits indo às lágrimas quando relembravam as filmagens e entrelaçavam situações da ficção com a realidade de cada um e do próprio Brasil atual. “Sonho” foi a palavra mais pronunciada ao longo da conversa e o desejo dos envolvidos na produção é transmitir uma mensagem principal: nunca desista dos seus sonhos.
A realização do próprio filme foi um sonho perseguido por Miguel durante muitos anos. A história é ambientada em um bordel e gira em torno de Gringa (Carmem Maura) uma velha prostituta cega que sonha em ir a Veneza, na Itália, para reencontrar o homem que ela abandonou, mas que jurou esperar por ela ao longo de toda a sua vida.
O roteiro do filme é uma adaptação de uma peça do autor argentino Jorge Accame, que o próprio Miguel já tinha adaptado para o teatro. Foi nos anos 1990, emendando um trabalho atrás do outro, em Buenos Aires, a capital argentina, que ele conheceu a encenação original. Em 2003, no Rio de Janeiro, Miguel estreava a versão brasileira da peça “Veneza” tendo como protagonista Laura Cardoso.
“Quando conheci a peça, o texto me encantou. Desde aquela época, percebi que era uma fábula muito fotográfica e sempre acreditei que renderia um belo filme. Costumo dizer que ‘Veneza’ é a persistência dos sonhos”, contou Miguel.
A demora para transformar a peça em filme se deu bastante por conta de preconceitos. Segundo Miguel, ele ouviu muitos “nãos” de produtores quando informava que o longa seria uma fábula ou uma comédia dramática. Por ele estar envolvido, a expectativa dos produtores era que seu filme fosse uma comédia. Como foi a primeira experiência de Miguel como diretor de cinema, em 2008: Polaróides Urbanas”, protagonizado por Marília Pêra, Arlete Salles e Natália do Vale, que também teve roteiro criado a partir de uma adaptação teatral.
Quando finalmente, em 2018, Miguel encontrou um produtor (Julio Uchôa) para “Veneza”, ele teve menos de um mês para fazer as filmagens. Como a protagonista original era espanhola, ele sonhou em ter a diva argentina Norma Aleandro para interpretar Gringa. Aos 85 anos, a atriz declinou do convite e sugeriu outra diva para ser a protagonista: a espanhola Carmem Maura, a musa de Pedro Almodóvar.
“Esse foi um projeto muito diferente. Sempre que venho para a América Latina é uma surpresa e ‘Veneza’ foi uma surpresa estupenda. Como público, se eu tivesse a oportunidade de ver esse filme, não perderia por nada”, disse a atriz de 75, em um depoimento gravado, que foi exibido durante a coletiva virtual.
Ao sim da atriz, seguiu-se um problema sanitário: para vir para o Brasil ela precisaria tomar a vacina contra a febre amarela, exigência para a entrada no país. A vacina, porém, não é recomendada para pessoas com a idade dela. A solução foi transferir as filmagens para o Uruguai. E nada mais deteve a produção, nem uma tempestade elétrica que destruiu um circo doméstico, usado como locação.
Gringa é a dona do bordel onde vivem as prostitutas Rita (Dira Paes), Madalena (Carol Castro) e Jerusa (Danielle Winits), além do faz tudo Tonho (Eduardo Moscovis). Ele é órfão de uma prostituta, foi criado no local e recebe sexo gratuito em troca de alguns serviços prestados às meninas e à casa. Formam uma família onde cada um, ao seu modo, é grato à Gringa pelo acolhimento. Assim, não mediram esforços para realizar o sonho dela de ir a Veneza. Um sonho que acabou por levar a trupe para a cidade italiana onde filmaram por três noites seguidas. (Tem algo de Federico Fellini nessa produção? Sim!)
Carmem Maura tinha pouco tempo para participar da filmagem, mas Miguel não facilitou para ela. Gringa teria que falar em portunhol. Dira contou que a veterana atriz estudava muito para fazer suas cenas, principalmente, por conta da dificuldade com o português.
De forma unânime, o elenco percebeu generosidade por parte de Carmem - "por coincidência”, um traço da personalidade de Gringa.
Na foto à esquerda, Carmem Maura entre Dira Paes e Eduardo Moscovis; à direita com Carol Castro e abraçada com Danielle Winits.
“No bordel, todos reconhecem os defeitos da Gringa, mas também reconhecem a generosidade dela. Minha personagem, a Rita, não sabe sonhar. Ela faz do sonho da Gringa seu próprio sonho. A gente sempre precisa de alguém para ajudar a gente a realizar sonhos. É difícil realizar sonhos sozinha”, comentou Dira Paes.
“A Jerusa é conformada com a sua vivência. Ela sabe onde é o seu lugar. Ela não sabe ler, mas é feliz por viver com uma família, naquele lugar nenhum”, disse Danielle Winits sobre a sua personagem, ao que Miguel completou: “A Jerusa é chucra, não tem as ferramentas necessárias nem para sonhar. Porém, ela não cospe no sonho do outro e corteja o sonho alheio à distância”.
A entrada em cena de Carol Castro é, literalmente, uma história à parte. A trama paralela em que vive não fazia parte da peça original. Foi criada por Miguel, com a devida aprovação do autor argentino, para aumentar a duração do roteiro. Sua personagem, a exuberante Madalena, vive um romance com Julio (Caio Manhente) um jovem trans que só consegue viver sua sexualidade no bordel. Seu pai (Roney Villela) fará com que seu destino seja trágico.
“O pai é um personagem que facilmente poderia cair no clichê. O Brasil está entulhado de gente como esse pai. São pessoas que vivem no cercadinho, burras e preconceituosas ao extremo. Ele leva o filho no puteiro e quando descobre o que o filho faz , age como um estúpido. Essa história é um rasgo na poesia do filme e simboliza um monte de gente”, afirmou Roney Villela.
E Caio Manhente acrescentou:
“Julio é um personagem simbólico em um país transfóbico como o Brasil. Ele representa o sonho de liberdade de muita gente. Minha preocupação foi não criar um garoto amargurado porque, afinal, ele se propôs a viver o seu sonho e viveu. No bordel, ele vivia sua vida real enquanto, em casa, representava um personagem”.
Miguel contou que a inspiração para o Julio veio de um “casal bizarro, mas muito feliz” que conheceu, em um cabaré: era um travesti casado com uma prostituta, ambos com vinte e poucos anos.
“Foi a observação e aceitação do que é diferente que me permitiu criar os personagens para o filme”, completou Miguel.
Quando Carol entrou para a trupe do filme, sua filha Nina era praticamente recém-nascida. A bebê frequentou o set ao lado da mãe, que entre um take e outro, amamentava:
“A Madalena é a personificação do amor nessa vida desgraçada retratada pelo Miguel. Quando aceitei fazer o filme, eu estava recém-parida e ainda não estava me vendo como mulher. A filmagem foi como um renascimento para mim. A Madalena trouxe de volta para mim a mulher. Uma mulher com o frescor do sonhar. Foi muito mágico”, contou Carol.
Ela admitiu ter ficado muito nervosa ao saber que iria contracenar com Carmem Maura. Porém, nos bastidores, conversas sobre filhos e amamentação, puxadas pela atriz espanhola, quebraram a quebrar o gelo e criar aproximação. Tanto, que uma “brincadeira visual” criada por Carmem foi fazer a cega Gringa reconhecer que estava diante de Madalena após tocar os seios da personagem.
Um dos mais emocionados ao falar do filme foi Eduardo Moscovis. Ele contou que se lembrava da peça encenada no Rio de Janeiro (seu personagem foi, então, interpretado por Tuca Andrada).
“Fiquei muito emocionado com o roteiro. O filme é sobre sonhos e realizações de sonhos”, afirmou, ao que Dira Paes emendou. “Atualmente, parece que a permissão de sonhar está longe de nós porque temos que lutar por coisas muito básicas”.
A observação de Dira foi um verdadeiro “gatilho” para Eduardo:
“A gente está sendo muito massacrado. A briga de resistência é muito dolorosa. Nós, artistas, não temos vida boa. Não aproveitamos Veneza como turistas, por exemplo. Nós ficamos três dias trabalhando. A gente não rouba dinheiro de ninguém. A gente é muito honrado. A gente faz tudo isso pela gente, mas também pelo público. Nós levamos beleza para as pessoas. Espero que, com o filme, as pessoas consigam refletir e se olhar. Falar de ‘Veneza’,agora, é muito potente”.
“Veneza” tem faturado alguns prêmios pelos festivais por onde passa. No Festival de Gramado de 2019, rendeu Kikitos de melhor direção de arte (Tulé Peake) e melhor atriz coadjuvante para Carol Castro. Miguel Falabella levou o prêmio de melhor roteiro no 23º Festival de Cinema Brasileiro de Miami. O Los Angeles Brazilian Film Festival rendeu para a produção quatro premiações: melhor direção de fotografia (Gustavo Hadba), melhor ator (Eduardo Moscovis), ator coadjuvante (André Mattos) e atriz coadjuvante (Carol Castro).
A estreia deveria ter acontecido ano passado, mas a pandemia do Coronavírus não permitiu por ter obrigado os cinemas a fecharem as portas para o público.
“O filme chega aos cinemas em um momento lindo. É uma ilha de sensibilidade em meio à barbárie. É bom que as pessoas acreditem na sua capacidade de sonhar e apostem na capacidade do sonho”, afirmou Miguel.”Tudo o que acontece, atualmente, no país, passará. Eu peguei a época barra pesada de ter que fazer ensaio para a censura, tive espetáculos mutilados. Eu sempre falo: não receba o ódio. Presente que é dado e não é aceito, fica com a pessoa”.
Comments